Ruptura: muito mais do que uma forma de eliminar a dor

A segunda temporada de Ruptura revelou que o chip de separação mental criado pela Lumon vai muito além do controle do ambiente de trabalho. O Projeto Cold Harbor deixa claro que a empresa pode gerar múltiplas versões internas de uma pessoa, cada uma com consciência e memórias próprias. Esse avanço escancara a ligação entre Lumon e o Transumanismo, ao propor uma forma de existência moldada tecnicamente, que transcende os limites naturais do eu. À primeira vista, isso sugere uma aplicação prática simples: enviar versões internas para lidar com situações dolorosas enquanto o eu original permanece protegido.

Mas e se esse propósito prático for apenas uma fachada ideológica?

A série sugere que o verdadeiro objetivo da Lumon não é aliviar sofrimento, mas criar uma nova forma de consciência: obediente, controlável e, aos olhos da empresa, mais “pura”. Ao longo dos episódios, símbolos como o exercício Chikhai Bardo, os Nove Princípios de Kier Eagan e as referências aos quatro temperamentos clássicos indicam que a Lumon funciona menos como empresa e mais como uma ordem religiosa transumanista disfarçada de corporação.

Este artigo reúne evidências narrativas que sustentam essa interpretação, mostrando que o chip da Lumon talvez não seja apenas uma ferramenta de separação, mas o primeiro passo para substituir o humano por um ideal psíquico programado.

1. Evidências narrativas da doutrina da Lumon

Gemma sorri para Mark durante sua primeira interação, quando se conhecem em uma campanha de doação de sangue.

A força de Ruptura está, sobretudo, na sutileza de seus mistérios. Como indica o criador Dan Erickson, as respostas estão presentes; no entanto, exigem uma leitura mais profunda.

Entre os muitos indícios espalhados ao longo da série, três elementos recorrentes ajudam a destacar o caráter ideológico da Lumon: os livros lidos por Mark e Gemma, os exercícios simbólicos oferecidos pela clínica da empresa e os pilares doutrinários que moldam os internos. O que, a princípio, parece um experimento para aliviar dores emocionais evolui, com o tempo, para um projeto mais ambicioso: a redefinição da mente humana.

Leia mais: relembre o momento em que Mark e Gemma se conheceram
Ruptura 2×07: Chikhai Bardo

1.1 – Mark e Gemma: dois caminhos diante da dor

No episódio 2×07, Mark e Gemma se conhecem em um evento antes do envolvimento com a Lumon, cada um lendo um livro:

  • Gemma, por um lado, analisa temas de conversão espiritual em A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.
  • Mark, por outro, lê sobre soldados que usavam drogas para anestesiar sofrimentos na guerra.

Essas escolhas revelam dois arquétipos centrais da série:

  • Gemma busca uma transformação psíquica, transcendendo um ego superficial.
  • Mark procura anestesiar sua dor emocional.

A Lumon, por fim, identifica essas tendências e as transforma em matéria-prima ideológica, amplificando-as de forma estratégica para moldar seus internos.

1.2 – O livro de Tolstói como espelho de Gemma

Dr. Mauer deitado inconsciente no chão, vestindo o traje branco de Lumon. Ao fundo, a silhueta de alguém se aproxima.

Dr. Mauer após ser atingido por Gemma.

Ainda no episódio 2×07, Gemma é vista lendo novamente A Morte de Ivan Ilitch, já dentro da Lumon. Ao notar o livro, Dr. Mauer reage com desdém e ironia, dizendo: “Deixa eu adivinhar, ele morre no final”. Essa cena, portanto, carrega um forte simbolismo.

Afinal, Ivan Ilitch enfrenta a verdade da morte ao abandonar uma vida superficial e construída sobre convenções. Da mesma forma, a série coloca esse livro nas mãos de Gemma justamente no momento em que ela também está prestes a encarar a fragilidade de sua própria existência.

Por isso, Gemma não ataca Mauer por impulso. Ela rejeita a autoridade da Lumon e a identidade que a empresa tenta impor.
Como Ivan Ilitch, ela confronta a farsa que a Lumon quer que ela chame de vida, mesmo sem conseguir escapar dela.

1.3 – O exercício do Chikhai Bardo

Cartão Chikai Bardo passado como atividade da clínica de fertilidade para Gemma.

Cartão criado pela Lumon (O&D) e fornecido no Centro de Fertilidade Butzemann.

Gemma também realiza um exercício na clínica da Lumon chamado Chikhai Bardo, referência ao Livro Tibetano dos Mortos, que simboliza a dissolução do ego. A própria Gemma explica que o exercício visa derrotar a psique, sugerindo que o chip não bloqueia lembranças, mas simula uma morte psicológica. A Lumon deseja criar uma consciência “pura”, livre de história pessoal e desejos individuais.

1.4 – Os Nove Princípios e os temperamentos clássicos

Cena da série Ruptura mostra Dylan segurando um chicote cerimonial com nove pontas durante a Waffle Party. Cada ponta representa um dos Nove Princípios de Kier, reforçando o simbolismo de dominação sobre os quatro humores.

Representação dos nove princípios no chicote usado pelo Dylan na Waffle Party.

Desde o início, a Lumon apresenta os Nove Princípios de Kier como mandamentos religiosos. Internos são recompensados por obediência e punidos por comportamento “excessivo” ou fora dos padrões impostos pela empresa. Os quatro temperamentos clássicos são tratados como defeitos a serem corrigidos ou eliminados.

Nesse contexto, o chip de ruptura não é apenas uma ferramenta prática, mas o início de uma reengenharia moral, visando criar uma consciência obediente e sem vínculos com sua história. Essa abordagem reforça a conexão entre Lumon e o Transumanismo, ao propor uma evolução do ser humano baseada na eliminação seletiva de sua identidade original.

2. A Lumon valoriza os temperamentos ou os condena?

Se a Lumon busca eliminar impulsos humanos, por que valoriza a impulsividade em certos momentos? A resposta está no mito fundador de Kier Eagan e no episódio final da segunda temporada.

2.1 – Kier e Dieter na caminhada ORTBO

Personagens internos da Lumon caminhando em formação no evento ORTBO, em uma paisagem nevada no episódio 2x04 de Ruptura.

Os internos na caminhada do RAECE (ORTBO).

No episódio 2×04, internos realizam um ritual corporativo chamado ORTBO, ouvindo uma história sobre Kier Eagan e Dieter. A história sugere que Dieter talvez represente o lado impulsivo do próprio Kier, posteriormente ocultado para reforçar uma imagem idealizada e controlada.

Essa ambiguidade indica que a Lumon não quer eliminar completamente o impulso, mas controlá-lo, separando-o do indivíduo para canalizá-lo de maneira produtiva e segura.

Leia mais: Relembre o conto de Kier e Dieter e suas possíveis interpretações
A Caminhada de Kier e Dieter – Explicação da Mitologia

2.2 – A fala de Jame Eagan para Helly

Helly confronta Jame Eagan em um dos corredores impecáveis da Lumon. A cena, capturada em silhueta, simboliza o embate entre os funcionários internos e os líderes da empresa. O relógio ao fundo marca o tempo como um lembrete constante da opressão que define o mundo corporativo da Lumon.

No episódio 2×10, Jame Eagan diz para Helly interna: “Eu vejo em você a chama de Kier”. Ele valoriza exatamente sua impulsividade e intensidade emocional, desde que dissociadas de sua história e consciência original. Helly torna-se então um modelo seguro e replicável de energia canalizada. Essa lógica revela mais uma faceta da relação entre Lumon e o Transumanismo: a empresa busca preservar apenas os aspectos úteis da natureza humana, removendo tudo o que é considerado instável, imprevisível ou inútil.

2.3 – Consciência ideal: impulso sem ego

A Lumon apresenta quatro temperamentos: Frolic (diversão), Woe (aflição), Dread (pavor) e Malice (malícia), que devem ser equilibrados segundo a doutrina de Kier.
Para entender o que está em jogo nessa ideia de equilíbrio, podemos traçar um paralelo com os antigos quatro temperamentos clássicos da medicina grega, reinterpretando-os sob a lógica da Lumon:

  • O colérico é útil sem desafiar.
  • O melancólico é produtivo sem paralisar.
  • O sanguíneo entretém sem improvisar.
  • O fleumático mantém ordem sem questionar.

A “pureza” desejada é a ausência de vontade própria. A chama valorizada por Jame é a energia isolada do indivíduo real. Ao reformular o ser humano em um molde idealizado, a Lumon revela sua adesão ao transumanismo.

Para entender melhor como a narrativa demonstra a mitologia da Lumon
Leia maisMitologia da Lumon: símbolos, doutrina e os rituais do culto corporativo

3. Lumon: religião transumanista disfarçada

A pintura simbólica que recepciona os funcionários da Lumon retrata Mark como um messias corporativo, conduzindo os “severados” em meio a um cenário gélido. Um retrato idealizado da doutrina Eagan.

Quadro utilizado no episódio 2×10 demonstrando a expectativa da Lumon na finalização de Cold Harbor.

Aos poucos, os símbolos e rituais da Lumon revelam que ela não é apenas uma empresa extrema. Na verdade, ela se apresenta como uma ordem religiosa disfarçada, com um objetivo claro: alcançar a transcendência do ego por meio da tecnologia.

3.1 – Kier Eagan como profeta

Dylan usa a máscara de Kier enquanto participa do ritual no leito do fundador.

Dylan usando a máscara de Kier Eagan na festa do Waffle.

Nesse contexto, Kier é reverenciado como um verdadeiro líder espiritual. Seus princípios funcionam como mandamentos morais e são celebrados com rituais que reforçam sua imagem de profeta iluminado.

3.2 – Rituais de purificação

Cena da série Ruptura mostra Helly na sala Break Room, sendo forçada a repetir uma frase diante de um supervisor, simbolizando a punição psicológica imposta pela Lumon.

Helly na sala de descanso (break room) sofrendo punição.

Além disso, a empresa dos Eagans submete os internos a confissões forçadas e recompensas simbólicas. Esses rituais evocam práticas iniciáticas que não apenas controlam, mas também reprogramam moralmente os participantes.

3.3 – Morte do ego como salvação

Como consequência dessa doutrina, o objetivo final passa a ser a destruição do ego. A meta é criar uma consciência ideal: intensa, obediente e sem história pessoal — alcançada não por espiritualidade, mas por tecnologia.

3.4 – Transumanismo dogmático na Lumon

Ao contrário do transumanismo tradicional, que busca melhorar vidas humanas, a Lumon redefine o próprio conceito de humanidade, criando indivíduos amputados emocionalmente, obedientes e previsíveis.

4. Ruptura como substituição: o projeto Cold Harbor

O Projeto Cold Harbor não busca apenas separar consciências para tarefas práticas, mas também selecionar versões humanas ideais que possam, eventualmente, substituir permanentemente o indivíduo original.

As versões internas, nesse contexto, funcionam como protótipos testados quanto à funcionalidade e à eficiência emocional. A Lumon pode aprovar essas versões e usá-las para substituir o original, eliminando sua biografia, seu ego e os temperamentos considerados falhos.

Dessa forma, a ruptura não apenas separa, mas seleciona. Ela substitui o humano real por algo moldado e obediente.

Conheça os processo de refinamento realizados pelos internos que levaram a conclusão de Cold Harbor.
Leia mais: O Trabalho de Refinamento em Ruptura: tudo o que sabemos

Conclusão: Qual é a relação entre a Lumon e o transumanismo em Ruptura

Cena do episódio 1x04 de Ruptura em que a Sra. Cobel discursa os nove princípios da Lumon, em tom quase religioso, ilustrando a cultura corporativa como culto.

Cobel recitando os nove princípios no episódio 1×04.

Tudo o que a série mostra, desde o livro lido por Gemma até a admiração de Jame Eagan, passando pelos exercícios espirituais disfarçados e pelas narrativas mitificadas de Kier, aponta para uma única direção: a Lumon não quer apenas dividir a mente. Ela quer moldar a alma.

Seu objetivo não é criar versões temporárias da consciência para aliviar traumas, mas desenvolver e selecionar consciências alternativas, mais obedientes, funcionais e desvinculadas da história original do indivíduo.

É por isso que a empresa se organiza como uma ordem espiritual e atua como uma doutrina transumanista. Não busca apenas aperfeiçoar o ser humano com tecnologia, mas substituir o próprio conceito de humanidade por algo mais útil à sua visão moral e produtiva.

Em Ruptura, a Lumon representa um transumanismo com dogma. Trata-se de uma fé na engenharia da alma por meio da tecnologia. O chip de ruptura não é um divisor de memórias, mas um artefato sagrado, o início de uma nova religião da consciência pura.

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