Um anime que não parece anime
Vale a pena assistir ao anime Anne Shirley? À primeira vista, parece que encontramos um título deslocado no meio de tantos outros. Entre mundos repletos de batalhas, poderes mágicos e reencarnações em realidades paralelas, surge uma garota ruiva, de olhos muito vivos, e nenhuma espada nas mãos — só palavras, e muita imaginação.
Este anime adapta o clássico literário Anne de Green Gables com uma sensibilidade rara. Sem pressa, sem ruído, sem espetáculo. Apenas o cotidiano, o crescimento e a beleza das pequenas coisas. É um anime onde a ação é rara, mas a emoção está sempre viva.
A escolha de adaptar essa história para o formato de anime tem raízes na relação profunda do Japão com a literatura ocidental no pós-guerra. Anne de Green Gables foi um dos livros que mais tocou o público japonês, especialmente após a tradução feita por Hanako Muraoka, em 1952. Como resultado, a repercussão foi tão forte que, décadas depois, a história foi escolhida para abrir a temporada de 1979 do prestigiado projeto World Masterpiece Theater.
Com direção de Isao Takahata e layouts assinados por Hayao Miyazaki, Anne Shirley foi, de certo modo, um ensaio para tudo o que viria a emocionar o mundo com Totoro e O Túmulo dos Vagalumes.
Mas antes de tudo isso, ele foi — e ainda é — uma história sobre pertencimento. Sobre alguém que não se encaixa, mas insiste em transformar o lugar onde está. Isso ressoa forte em quem também sente que olha o mundo com um filtro diferente. Talvez por isso o Japão tenha se encantado tanto por Anne — a ponto de ela se tornar uma personagem querida por gerações.
A força da imaginação em tempos difíceis

Imagem promocional oficial do anime Anne Shirley, divulgada pela Crunchyroll. Uso ilustrativo.
A infância de Anne não foi feita de contos de fadas — mas foi moldada por eles. Órfã, rejeitada várias vezes e exposta a maus-tratos, ela não se deixou apagar. Criou para si um mundo interno tão vívido que conseguia transformar arbustos em florestas encantadas e um simples riacho em palco para dramas poéticos.
A imaginação era o jeito que Anne tinha de sentir o mundo — e, ao senti-lo assim, ela o recriava.
É tocante perceber como o anime trata essa característica com profundidade. Não há glamour nem exagero nas paisagens internas que Anne conta — há beleza, mas também dor. Afinal, cada fantasia é uma tentativa de reorganizar o caos ao redor. De encontrar sentido onde não havia carinho. Em tempos em que falamos tanto sobre saúde mental e os impactos da negligência emocional na infância, essa história ganha nova relevância.
Ver Anne nomeando as coisas, atribuindo sentimentos a objetos e buscando refúgio nas palavras pode parecer inocente à primeira vista. Mas, com o tempo, percebemos que esse é o seu jeito de manter-se inteira.
Ela não está apenas sonhando — está reconstruindo o mundo do jeito que gostaria que ele fosse.
Além disso, o anime captura isso com delicadeza. Não julga. Apenas observa — e convida o espectador a fazer o mesmo.
A sensibilidade rara de um anime que parece literatura

Imagem promocional oficial do anime Anne Shirley, divulgada pela Crunchyroll. Uso ilustrativo.
Existem animes que fazem barulho, outros que sussurram — Anne Shirley respira. Ele respeita os silêncios, os olhares desviados, os gestos pequenos que dizem tudo. Cada episódio se desenrola como se fosse um capítulo de livro lido com calma, daqueles que a gente saboreia com a ponta dos dedos marcando a página.
O ritmo é deliberadamente lento. Há espaço entre as falas. O tempo parece dilatado, mas não por falta de conteúdo — e sim por um cuidado único. Cuidado com as palavras, com a música, com os tons das paisagens. O cenário rural da Ilha do Príncipe Eduardo — local onde a história se passa no Canadá — é desenhado com tanto carinho que parece ter cheiro, vento e temperatura próprios.
Essa escolha estética não foi casual. O projeto do World Masterpiece Theater buscava justamente adaptar grandes clássicos da literatura de forma fiel — mas fiel à experiência emocional, não apenas aos fatos. E é isso que faz Anne Shirley parecer literatura em movimento. A série não tenta modernizar Anne, nem tornar sua história mais palatável para o público atual. Ela apenas confia no valor eterno da sensibilidade humana.
Em tempos de cortes rápidos e estímulos constantes, o anime quase parece fora de tempo. Mas talvez seja justamente isso que o torna tão necessário.
Por que vale a pena assistir o anime Anne Shirley hoje
Assistir a Anne Shirley hoje é como abrir uma janela num quarto abafado. Não porque ela traga grandes reviravoltas ou mistérios — mas porque lembra que a delicadeza também pode mover o mundo.
Em meio a uma cultura de consumo rápido, onde tudo precisa ser ágil, funcional e viral, esse anime oferece o oposto: tempo para sentir. Ele não exige atenção total — ele a conquista com gentileza. E quando a gente percebe, está envolvido não pela trama em si, mas pelo jeito como ela toca o cotidiano: com poesia, humanidade e ternura.
Se você procura algo que vá além do entretenimento passageiro — algo de ritmo suave, que reforce o valor da sensibilidade — essa série pode ser um pequeno presente.
Anne Shirley não é um anime para maratonar. É um anime para ser refletido, vivenciado e sentido.
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Disponível na Crunchyroll
Se quiser assistir, o anime está disponível na Crunchyroll.